Desaforo se leva pra casa
Lá pelos treze anos, no auge do orgulho de ter vencido a infância, eu me dava bem em quase todas as coisas que fazia.  De criação mateira, possuía a agilidade dos felinos e a resistência dos touros. Embora de estatura pequena e sem nenhuma musculatura que aparecesse, conseguia vencer num confronto até mesmo garotos mais velhos e mais fortes. Não gostava de brigas e sempre procurava me dar bem com todos, mas não tolerava desaforos. Havia crescido ouvindo a frase tão conhecida: “Eu não levo desaforo pra casa.” Apesar de ser pacato por natureza, sempre me escurecia a vista quando alguém me lançava invectivas, e então, eu não me responsabilizava mais pelo que pudesse acontecer. Geralmente o resultado era alguém meio quebrado e o meu coração partido porque, na verdade, eu não era violento e nem gostava de violência. Mas… afinal eu não podia levar desaforo pra casa.
 
    Naquela tarde bonita, de um verão escaldante, minha mãe pediu-me para ir à mercearia do centro da vila comprar ovos. Lá estava eu, depois de sair da mercearia, virando a esquina da pracinha quando tudo começou. Os dois garotos pedalavam suas bicicletas em direções opostas, cada um querendo passar primeiro numa faixa estreita onde a rua estava sendo consertada. Nenhum deles conseguiu atingir o alvo e, em grande velocidade, acabaram por se chocar com violência. O resultado foi uma bela queda; uma bicicleta com a roda dianteira meio quadrada e a outra com o guidão virado para trás.
 
    Os dois garotos talvez tivessem a mesma idade, mas um era mais avantajado, de ombros largos, enquanto o outro era mais franzino e de menor estatura. O primeiro, ainda sem se levantar,deixou escapar sua indignação:
 
― Ô seu vagabundo, será que não vê aonde anda?
 
    O outro retrucou imediatamente, pondo-se de pé com maior destreza:

― Eu é que sou culpado, é? Você é que vem se enfiando aonde não lhe cabe, seu paspalhão!
 
― Paspalhão, eu?! ― gritou o grandalhão, já pulando por cima da bicicleta ainda caída.
 
    Sem dar tempo para nada meteu uma mão na nuca e a outra no lado da cintura do menor e empurrou tão violentamente que o pobre coitado deu várias cambalhotas e acabou com o rosto enfiado na areia.
 
    O agressor, de peito estufado, bradou:
 
― Isso é pra você aprender que eu não levo desaforo pra casa.
 
    Nesse ponto eu já estava chorando de tanto rir. A cena foi muito engraçada. Chorava mais ainda olhando o franzino lá no chão, mais parecendo um frango destroncado. Ele tanto balançava a cabeça como esticava e encolhia o pescoço, na tentativa de livrar-se da areia. Por fim, sentou-se, cuspindo a areia da boca e removendo a que podia do rosto.  Caminhou com uma calma inacreditável para o agressor, que agora estava montado na roda dianteira da sua bicicleta, tentando endireitaro guidão. Sem tempo para defesa o franzino desferiu tantos golpes de mãos e pés ao mesmo tempo que a pena dos presentes se voltou agora para o grandalhão, que acabou com o quadro da própria bicicleta enfiado no pescoço. A julgar pelos gemidos e a cara que fazia devia ter alguns ossos quebrados.
 
    Nesse ponto eu já não ria mais. Achei que a coisa ficou muito séria. Fiquei mais sério ainda quando ouvi o franzino dizer, enquanto empurrava sua bicicleta calmamente pelo canto da rua:
 
― Quem não leva desaforo pra casa aguenta na rua mesmo. Só fica um pouco mais feio.
 
    Pedalei minha bicicleta de volta para casa tão calado quanto um túmulo e mais concentrado do que um monge em meditação. Parece que não encontrei ninguém pelo caminho, pelo menos não percebi.
 
    Depois daquele dia não demorou muito alguém notar alguma mudança em mim. Cultivava autodomínio e já não quebrava as pessoas por nada. Inquirido sobre a razão, a explicação era simples, embora, talvez, não entendida por todos:
 
    ― Apenas aprendi que é melhor levar desaforos pra casa. É mais seguro…  e menos feio.
                                Crônica do livro “Lições que a vida ensina” — Poderá encontrar outras 49 ensinando lições de vida.

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